Flor de Manacá

Como exemplo dessa preocupação mais ampla com os dilemas da cultura patriarcal e o sofrimento das mulheres do nordeste, nasce na IBP, no ano de 2006, o Grupo Flor de Manacá, assumidamente articulado com uma hermenêutica feminista de gênero. A pastora Odja Barros Santos (2010, p. 49)¹, em dissertação de mestrado recentemente concluída, afirmaria que na origem dessa experiência, estão mulheres que tomaram a decisão de iniciar um estudo bíblico na perspectiva de aliar a isso uma reflexão sobre a condição sócio-cultural e religiosa da mulher nordestina, ao mesmo tempo em que buscam a sua própria vida e realidade.
Embora existam análises importantes sobre o sistema patriarcal que caracteriza a formação da cultura brasileira em geral, e do nordeste em particular, o campo dos estudos teológicos ainda carece de movimentos que se posicionem frontalmente diante dos dilemas enfrentados cotidianamente por mulheres sempre muito pobres, e quase sempre negras. O trabalho em torno da hermenêutica feminista de gênero, como realizado na IBP, pode ser caracterizado como um dos maiores avanços na práxis dessa comunidade batista, por responder a uma demanda totalmente silenciada por parte destas igrejas, e também pela sociedade como um todo. Mais do que um movimento pedagógico que visa transmitir informações sobre a Bíblia, ou ainda mais do que a simples contextualização da interpretação bíblica, o Grupo Flor de Manacá acaba por se constituir como um interessante instrumento de empoderamento de mulheres simples, na capital Maceió e no interior do estado, que, de outra maneira, permaneceriam passivas frente à posição subalterna em relação aos homens, imposta pela cultura patriarcal na qual estão inseridas. O potencial libertador e conscientizador da Bíblia, serve como fomento para uma nova atitude dessas mulheres frente à sociedade e frente à si mesmas. Nas palavras de Santos (idem, p. 53)¹, “o Grupo Flor de Manacá busca caminho de libertação, de cura e de reconstrução que traga vida melhor para mulheres nordestinas através da releitura da Bíblia”.
            Uma vez que a IBP, assim como os batistas brasileiros em geral, tem sua história de formação ligada a toda uma tradição religiosa de matriz fundamentalista, os dissensos e os embates internos frente a propostas como uma hermenêutica feminista de gênero tornam-se inevitáveis. Não obstante, o Grupo Flor de Manacá, entendendo que os desafios relacionados à cultura patriarcal do nordeste não se circunscrevem ao campo religioso e nem à sua própria comunidade – sobretudo no que diz respeito ao recorrente fenômeno da violência doméstica contra as mulheres –, decidiu expandir o seu raio atuação para além das fronteiras da IBP. Santos (idem, p. 55)¹ define esse movimento dizendo que o Grupo Flor de Manacá definiu ampliar seus objetivos para além da comunidade local e decidiu espalhar a semente dessa leitura da Bíblia para outras comunidades e grupos. Para isso, iniciou a publicação de uma revista que compartilhe os estudos e as experiências do grupo. Além disso, começamos a realizar seminários e oficinas de leitura da Bíblia na perspectiva popular e feminista com igrejas e em congressos onde somos convidadas.
            Até o presente momento, a prática pedagógica de uma ampla parcela das igrejas batistas brasileiras tem sido marcada pela reprodução sistemática de conteúdos prontos, sem qualquer articulação com os grandes dilemas sociais, políticos, culturais, e mesmo espirituais que tocam os respectivos contextos. O uso da Bíblia quase sempre tem como finalidade reforçar antigos posicionamentos doutrinários internos, assim como refutar teologias e práticas religiosas distintas das suas próprias. Ao adotar a metodologia do CEBI na sua prática pedagógica, o Grupo Flor de Manacá inaugura na IBP uma nova possibilidade de relação com a Bíblia, marcada por uma maior participação popular e pela relação direta com os dilemas enfrentados no cotidiano das pessoas que vivem nessas comunidades. No lugar das apropriações verticalizadas e pouco participativas, essa nova forma de hermenêutica bíblica privilegia a comunidade em seu papel de sujeito de reflexão teológica. O resultado visado soa bastante audacioso, mas também tem ares reconhecidamente progressistas quando vistos em função da média das comunidades batistas brasileiras.
Para a pastora Odja Barros Santos, esses resultados devem ir além dos meros objetivos ligados ao campo religioso, tocando as estruturas sociais, como sinalizações visíveis da provisoriedade da chegada do Reino de Deus, entre o já e o ainda não. Para ela espera-se que o trabalho do grupo provoque transformações sociais, comunitárias e pessoais, principalmente quanto à maneira de ler e interpretar a Bíblia. Através da experiência com o grupo temos observado que as mulheres foram se posicionando como sujeitos de sua própria leitura. Durante o estudo, elas falam, participam, saem do silêncio. Começam também a ter mais liberdade de fazer perguntas sobre o texto sem medo, exercendo o seu direito de suspeitar, imaginar, criar (Santos, 2010, p. 65)¹.

*Texto escrito por Paulo Nascimento.
¹ SANTOS, Odja Barros. Uma hermenêutica bíblica, popular e feminista na perspectiva da mulher nordestina: um relato de experiência. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: EST/PPG, 2010.